Terça-feira, 20 de Novembro de 2007

POLÍTICA PARA O LIVRO E A LEITURA

DEBATE SOBRE «POLÍTICA PARA O LIVRO E A LEITURA», REALIZADO NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALMEIDA GARRETT, POR INICIATIVA DO SECTOR INTELECTUAL DO PORTO DO PCP, E EM QUE INTERVIERAM FRANCISCO MADRUGA, RUY VAZ PINTO, ANTÓNIO LUÍS CATARINO E JOSÉ ANTÓNIO GOMES – PORTO, 3/10/2007

 


Intervenção do editor António Luís Catarino *

 

 

 

Acedi, com agrado, ao convite que me foi endereçado pelo Sector Intelectual do Porto do Partido Comunista Português e por José António Gomes para estar presente neste debate. De facto, assiste-se hoje a um multiplicar e transitar estranho de tudo o que é discutível para a arte do espectáculo. E, na medida muito capitalista de quantificar tudo o que será passível de lucro, o debate e a «questão premente» do livro e da cultura invadem todo o panorama editorial e mediático quando, ao mesmo tempo, nunca foi tão pobre o apoio à cultura, ao livro, à leitura pública e às bibliotecas, à educação e à escola pública. O espectáculo, definido por Marx como a diferença entre o valor de troca das mercadorias e o valor de uso das mesmas, encontra aqui um amplo espaço de expansão no entretenimento, valor último da estupidificação e da alienação. Se, até há poucos anos, o capitalismo hesitava, ou não tinha condições objectivas de apropriação, nos campos de intervenção do lucro e da espoliação humana na cultura, dando um espaço de aparente liberdade a este campo, assim como à educação, às igrejas, ao desporto, ao próprio corpo humano, hoje, e tal como previram os marxistas, agudizaram-se as metas de exploração no quadro cultural, com resultados miseráveis no panorama cultural e na independência e liberdade do sujeito. Hoje a inteligência conquista-se a ferros.

           

Não me cabe aqui hoje falar nos mecanismos, por vezes bem ínvios, do mercado do livro. Deixo isso para outros e lembro-me da intervenção bem oportuna de José António Gomes na Feira do Livro do Porto deste ano num importante debate onde estava presente, entre outros, Teresa Calçada que tem particular responsabilidade no apoio à leitura. Tudo está mal: o preço exagerado do livro, a distribuição leonina do mesmo, o seguidismo das editoras perante as alegadas escolhas do grande público como se ele existisse de facto (o tal grande público), a falta de escrúpulos de grande parte dos divulgadores nos jornais, o fim da crítica literária, reciclada, agora, em analistas do mercado do livro e basbaques das novas tecnologias dos e-books, e dos i-pods, a falta de stocks das livrarias, mesmo nas de referência, e, talvez o mais importante disto tudo, a falta de um pensamento estratégico na definição de um apoio ao livro e à leitura pública e à defesa da língua. Vamos ser sinceros: a forma como grandes grupos estrangeiros atacaram e atacam editoras portuguesas é um clássico do modo de operar capitalista não sendo diferente da lógica da venda de giletes (este produto não foi escolhido ao acaso – era a especialidade anterior de um administrador que substituiu um conhecido editor que se chamava Nelson de Matos). Trata-se de acumulação e controlo de mercados numa primeira fase e de imposição das escolhas do público, moldando falsas necessidades e desenhando ditames da moda literária através da publicidade e da concorrência desleal de preços, recorrendo ao consumo fácil e ao «não se preocupe, cá estamos nós para escolher por si, porque você só tem tempo para o trabalho – dê graças por ainda o ter! – tome lá um best-seller e não pense mais nisso e se quiser ofereça-o também aos seus amigos!». Claro que este best-seller, dizemos nós, é preferencialmente de origem anglo-saxónica, mais de expressão norte-americana que inglesa, tem uma construção literária vinda das melhores escolas de Hollywood (ou da Venda do Pinheiro se o tal best-seller for de origem portuguesa), paga-se nas páginas também elas recicladas dos antigos suplementos literários agora transformados num amontoado de fait-divers, liga pouco à sintaxe, à tradução e à carga psicológica das personagens e ao seu enquadramento social, visto que está construído o «horror ao intelectual» que escreve só para ele, portanto inteligível só por ele, o tal intelectual, e não fará mal ao mundo não saber quantos cantos tem «Os Lusíadas», se é More ou Mann, que a Presidência da República é já ali e também não morre de amores pelas coisas das Letras. Também todo o processo de alienação da produção, referido por Marx como a separação do produto elaborado pelo trabalhador do produto apropriado pela empresa e quase impossível de equacionar no mundo da edição, torna-se exequível agora com as editoras que vendem a sua chancela a quem quiser editar umas palavras e umas pretensas ideias a quem pagar a edição. A alienação no seu melhor permite agora a falsa «democratização» do processo de edição por editoras sem escrúpulos e que baixam a qualidade dos livros, invadem o mercado de produtos mais que duvidosos e desacreditam o ofício de editor que arrisca, que escolhe, que conhece e promove o trabalho do seu autor.

 

Interessa-me mais dar pistas para combater, resistir, a este estado de coisas. Uma opção editorial empenhada na desconstrução da lógica monopolista de mercado deve ter em conta, para além da subjectividade do gozo pessoal e colectivo que tal projecto acarreta, o que obriga a cumplicidades várias entre os autores, editores, gráficos, alguns livreiros e leitores, exige também aquilo que denominaria a opção pelo periférico, pelo minoritário. Significa isto, que ao fazê-lo estaremos perante uma escolha assente na liberdade, na insubmissão, na resistência e na recuperação do que tão caro foi a Marx e a gerações de revolucionários dos dois séculos anteriores – na crítica implacável a tudo o que existe! É por isso mesmo que optamos, num mundo de uma cor só, monocórdico, cinzento e extremamente perigoso, com Bush ou sem ele, em dar a conhecer as literaturas periféricas e minoritárias, tendo já a Deriva editado da Galiza, da Bretanha, do País Basco e agora, em menos de um mês, da Escócia. Continuaremos esta deriva, na base do que foi definido como um processo de procura incessante do desconhecido até ao ponto, que se presume nunca encontrado, de criação de uma situação irreversível, de não retorno. Para uma editora este processo desembocará na edição de um simples livro, mas também num processo de conhecimento de um autor, de diálogo com os leitores, de viagens e de lutas várias contra o que está estabelecido.

Num próximo livro que a Deriva editará muito em breve, «O Espírito Nómada», Kenneth White cita o poeta comunista escocês MacDiarmid, que se entusiasmava com os antigos dicionários dialectais da velha literatura europeia. Dizia ele: «Sinto grande prazer nas palavras e no arcaico, no idiomático, no insólito, tudo o que tem um carácter fortemente local, atrai-me prodigiosamente». E ainda: «Há nos falares locais palavras e frases que me encantam e me dão a impressão de terem sido criadas graças a processos mentais muito diferentes do meu e muito mais poderosos. Veiculam observações de um tipo que o espírito moderno já não consegue obter senão com grande esforço, e de modo frágil». Dizia Debord que quando um patrão exige inovação, o escravo honesto é aquele que proclama de imediato a sua própria modernidade. É por isso, e por concordarmos igualmente com MacDiarmid, que resistimos ao moderno e ao Centro, se encararmos este último como a morada moderna do Império. Se, num exercício de pura especulação, adaptarmos os círculos económicos de Wallerstein, sabemos que a resistência para recuperarmos a Idade do Homem e do saber literário da poesia das palavras entusiasmantes e nómadas, a que também temos o gosto de dar visibilidade, é na semiperiferia e na periferia. Contra estados que, e sempre segundo este economista, são seguidistas do modelo central e sede do Império, onde os modos de exploração aumentam em função da proximidade da periferia última e onde a corrupção e a burocracia grassam como mimetismo das classes proprietárias, essas sim sem nacionalidade que as identifique. É neste estado de coisas que nos movemos. Cabe-nos aceitar ou resistir. Por nós, a opção está feita.

 

*: Editor.

publicado por pcpdiagonal às 15:00

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